Texto Luiz Mors Cabral

No Marrocos, para comer os frutos da argan as cabras não medem esforços. E ainda fazem a “colheita” da semente que vai gerar um dos mais cobiçados óleos do mundo

Foto: Vladimir Melnik_Shutterstock.
Argan (Argania spinosa). As sementes, depois da digestão das cabras, são limpas, abertas e prensadas para se tornarem um óleo muito valioso

Assistir à Copa me fez lembrar de quando fui ao Marrocos e não resisti escrever sobre algo que aprendi lá. Foi em junho de 2013. Eu passava então um período como pesquisador visitante no Instituto de Biotecnologia de Flandres, na Bélgica, e aproveitei que alguns amigos do laboratório estavam planejando uma viagem e me juntei a eles. Foi minha primeira vez na África e minha primeira vez em um país muçulmano. Tudo no Marrocos impressiona: cores, sons, cenários, cheiros. Os souks históricos de Marrakech, sua praça central sempre lotada, a paz de Asni, os povoados berberes nas montanhas Atlas, o monte Toubkal sempre nevado (a montanha mais alta do norte da África), a aldeia de Ait Ben Haddou, a garganta do Todra, o Vale das Rosas, o Vale das Tâmaras, a entrada do Deserto do Saara, as tintas e os labirintos da Medina de Fez. Mas, acima de tudo, fiquei muito sensibilizado pela visão dos oásis. No meio de extensões enormes de deserto, cidades inteiras, verdes, eram cercadas de plantações,
produzindo alimentos de forma quase miraculosa. É muito bonito ver como os marroquinos aprenderam a valorizar a pouca água de que dispõem. Uma situação quase oposta à que temos no Brasil, onde a abundância de água é tão grande que frequentemente nós a desperdiçamos como se ela fosse um bem inesgotável.

Certo momento, enquanto cruzava de carro pelo interior do Marrocos, tive uma visão
absolutamente arrebatadora. Cheguei mesmo a achar que estivesse sofrendo do “mal do deserto”, quando o calor, o sol inclemente e a falta de hidratação roubam a razão do viajante. Ao longe, algumas árvores pareciam estar repletas de cabras, como se fossem uma estranha árvore de Natal.

Galhos finos, retorcidos, dobrados ao peso de cabras. Não uma, mas dezenas de árvores com cabras em seus galhos, três, quatro metros acima do chão. Como aqueles bichos haviam subido ali? E o que eles estavam fazendo lá em cima? Ahmad, nosso guia, explicou o inusitado da situação: aquilo, definitivamente, não era uma alucinação, mas uma visão comum naquela região do Marrocos.

Foto: vovidzha_Shutterstock.
A argan é típica do Marrocos. A árvore pode alcançar até dez metros de altura e viver por até 200 anos. Acredita-se que o óleo de seus frutos faça milagres para a beleza dos cabelos

A polpa é uma verdadeira iguaria para as cabras, que se fartam calmamente equilibradas no alto das árvores. Depois, elas descem e são conduzidas pelos pastores para as vilas ou aldeias próximas. Para os pastores, levar as cabras para lugares cheios de árvores de argan é um grande negócio. Eles conduzem os animais pela manhã e vão cuidar de outros afazeres. No final do dia, voltam para buscar as cabras. Ali, elas passam o dia se alimentando livremente. De noite, já de volta para casa, realizam sua atividade mais importante para seus pastores: defecar.
No meio do cocô, destacam-se as sementes da argan. Se a polpa das frutas é um excelente alimento, as sementes não são digeridas pelas cabras e saem inteiras nas fezes.

O resultado da coleta são centenas de sementes que são limpas, abertas e prensadas para se obter o valioso óleo de argan, exportado a peso de ouro para países da Europa, onde são convertidos em todo tipo de cosmético. É curioso imaginar que um produto tão valorizado como o óleo de argan tenha, em algum momento de sua cadeia produtiva, passado pelas fezes de animais. Esse é mais um exemplo fantástico da relação entre a humanidade e as plantas, uma relação tão surpreendente quanto a seleção marroquina em uma semifinal de Copa do mundo.

Foto: Juanamari Gonzales_Shuttestock.
O valioso óleo de Argan

O ESPECIALISTA

LUIZ MORS CABRAL é biomédico com pós-doutorado na Bélgica e professor na Universidade Federal Fluminense, onde faz pesquisas para identificar os genes envolvidos no desenvolvimento vegetal. Também realiza projetos de divulgação científica sobre a domesticação das plantas, sempre usando uma linguagem cativante.

Essa reportagem foi publicada na edição 420 da Revista Natureza. Para adquirir, clique aqui.

[wpcs id=9559]