A dormência é o segredo de várias plantas para não desperdiçar sementes. No vale-tudo da procriação, até queimadas podem ser aliadas
TEXTO: Luiz Mors Cabral | FOTOS: Acervo Revista Natureza
A dormência é o fenômeno que restringe a germinação de sementes, fazendo com que somente haja germinação quando existem condições ambientais adequadas. A dormência impede que plantas típicas de climas quentes germinem quando ainda é inverno, por exemplo, ou que plantas que precisam de um solo encharcado brotem durante as estações de seca. É um fenômeno conhecido, mas não tão bem compreendido. Os mecanismos moleculares que fazem as plantas responderem a temperatura, umidade, vento ou incidência solar ainda são pouco conhecidos.
Apesar disso, todos nós que cultivamos plantas estamos mais ou menos familiarizados com a dormência. Durante meu doutorado, quando trabalhava no laboratório com a planta modelo Arabidopsis thaliana, semeava suas diminutas sementes em placas de petri que iam diretamente para a geladeira.
As placas só eram colocadas na estufa com a temperatura ideal para o crescimento da planta (20 °C) após dois dias de castigo na geladeira. A troca brusca de temperatura era suficiente para “quebrar a dormência” das sementes, disparando o início do desenvolvimento das sementes. O resultado era uma placa com dezenas de sementinhas que cresciam praticamente ao mesmo tempo. Caso as placas não fossem postas na geladeira antes de ir para a câmara de crescimento, as sementes da placa iriam se desenvolver sem sincronização, cada uma no seu tempo. Era uma forma esperta de enganar as sementes, convencendo-as de que, ao serem retiradas da geladeira, estavam saindo de um longo inverno para os 20 °C da primavera. Uma das formas mais interessantes de dormência está relacionada com o fogo.
Existem diversas plantas que precisam de queimadas pra terem suas dormências quebradas, disparando com o calor extremo seus processos germinativos. É o caso da malva-globo ou malva-globo-de-Baker, nome dado em homenagem ao botânico norte-americano Milo Samuel Baker. O nome científico da planta é Iliamna bakeri. Essa malva, nativa da Califórnia, gera sementes que podem permanecer anos sem germinar, esperando a ocorrência de uma grande queimada, dessas que eventualmente vemos acontecer nesta parte dos Estados Unidos, degradando as florestas e apavorando moradores e turistas.
O que é destruição para alguns, é para essa planta o sinal de que ela pode germinar. As populações de malva-globo-de-Baker chegam aos milhões após os incêndios, diminuindo ao longo dos anos seguintes, enquanto não acontece uma nova queimada.
No Cerrado brasileiro, recentemente foi descoberta uma planta com comportamento similar. A Bulbostylis paradoxa, uma erva perene da família Cyperaceae, conhecida popularmente como cabelo-de-índio, inicia sua floração apenas 24 horas após uma queimada. Nesse caso, não é uma quebra de dormência na semente, mas sim um processo que dispara a produção de inflorescências. Reduzidas pelo fogo à condição de tocos carbonizados, em 24 horas as inflorescências começam a despontar, e em cerca de uma semana já se desenvolveram em flores maduras, funcionais e prontas à polinização.
Essa resposta rápida da planta à passagem do fogo é uma grande vantagem evolutiva, porque possibilita que ela floresça, frutifique e disperse suas sementes por meio do vento em um espaço livre, com o solo descoberto, praticamente sem competidores. Vale lembrar que tanto o Cerrado brasileiro como algumas regiões na Califórnia são ambientes secos, propensos a queimadas sazonais. Nesses ecossistemas, algumas plantas evoluíram com a incrível habilidade de responder ao fogo. Essas prosperam onde as outras sucumbem.
O ESPECIALISTA
LUIZ MORS CABRAL é biomédico com pós-doutorado na Bélgica e professor na Universidade Federal Fluminense, onde faz pesquisas para identificar os genes envolvidos no desenvolvimento vegetal. Também realiza projetos de divulgação científica sobre a domesticação das plantas, sempre usando uma linguagem cativante.