Se você anda “engolindo” problemas demais, talvez seja uma boa hora para libertar a criança que há dentro de você e soltá-la no quintal, nem que seja por uns minutinhos
– Por Carol Costa
“Quequié isso, João Gualberto?” A filmagem caseira mostra um quintal de terra batida, de onde surge um garotinho loiro, de bermuda e galochas, carregando algo nos braços. A mãe se aproxima devagar, num misto de surpresa e enjoo: João Gualberto está abraçado a quatro sapos. Não rãs, não pererecas pequeninas. São sapos! Grandes, viscosos e colados ao peito nu de um garotinho de 4 anos!
“Não pode ficar segurando assim, João Gualberto, vai
fazer xixi em você! Solta o sapo!”. Resignado, o menino se agacha e se despe devagar, soltando sapo por sapo, a contragosto. Tem o corpinho sujo de lama e visgo, mas não liga a mínima se os sapos coaxam ou esperneiam.Um deles se afasta desengonçado pela grama e João Gualberto resolve recolher todos outra vez, num abraço
de despedida. A mãe vai à loucura.
Deve existir um momento exato em que deixamos de ser criança – suspeito que ele aconteça em épocas diferentes para cada pessoa, mas que não seja exatamente quando começamos a namorar ou quando as contas de cartão de crédito passam a vir no nosso nome. Talvez tenha acontecido naquele dia em que você caiu da árvore, quebrou o braço e a dor roubou sua inocência. Pode ser que você tenha se despedido da infância depois de uma ferroada de vespa, um arranhão de gato, uma espinhada na roseira, um coração partido pelo primeiro amor. Será a dor o que nos torna adultos antes da hora?
Os anos passam e ninguém mais senta no chão “sujo”, brinca na lama “cheia de bactérias” ou mexe em cachorro “de rua”. Seres responsáveis que viramos, abastecemos nossas casas com germicidas, fungicidas, sabonetes antimicrobianos. Comemos em praças de alimentação portando bandejas de plástico cheias de canudos, talheres e pratos descartáveis. Depois lavamos as mãos sem tocar na torneira, atendendo ao aviso de “evitar a contaminação cruzada”.
Um dia, minha ficha caiu. Desfazendo as sacolas de compras, descobri que tinha gasto mais com alvejante, sabão em pó, água sanitária e outras maravilhas em frascos do que… com frutas, verduras e legumes. Epa! Eu, que tinha mastigado caramujos, dormido na grama até quase ser carregada pelas formigas e plantado feijõezinhos, agora era esse tipo de adulta control freak? Não, não e não!
Decidi resgatar a criança feliz e naturalista que existia em mim, talvez encolhidinha no fundo da minha alma, abraçada a todos os sapos que tive de engolir na vida adulta. Troquei o shopping pela pracinha em frente de casa, do tamanho ideal para não espantar minha menina verde.
Fiz suco de laranja em casa – nem lembrava da existência dos espremedores de frutas! – e fui para a praça destemida: eu e meu suco com gominhos. Não demorou muito para uma abelha me achar. Eu deveria ter saído correndo. Estava programada para isso desde criança, quando alguém me disse que eu era alérgica.
Me segurei: não ia me afastar. O resgate da minha criança exigia valentia e eu precisava ser a heroína que ela esperava de mim. A abelha andou por todo o copo, ameaçou um afogamento, depois ficou ali no canudo. Estava tão perto que pude ver a pelugem que envolve seu abdômen rajado, seus grandes olhos compostos, as patas e antenas articuladas, da espessura de fios de cabelo. Ela ficou por ali uns minutos, depois foi embora, tão rápido quanto chegou.
Olhei ao redor: havia maravilhas por toda parte. Teias de aranhas, musgos úmidos, tatuzinhos, lagartas, piolhos-de-cobra, vagens secas e estaladiças. Passou um cachorro repuxando seu dono muito empertigado, mas eu já não via mais com meus olhos de adulta. Assobiei, e ele veio naquele trote alegre dos cães. Me lambeu a cara toda sem a menor cerimônia. Abanou o rabo despudoradamente. Deu uma fungada e foi puxado, “não, Luke!, não faz assim na moça!”. Não sei bem quando as crianças viram adultos, mas tenho certeza de que foi ali, naquela lambida, que eu voltei a ser criança.