Eles não cresceram para revelar o castelo do gigante, mas trouxeram tesouros muito maiores para as crianças que aprenderam, na escola, a cultivar uma sementinha

– Por Carol Costa

“O meu ganhou! O meu ganhou!” Minha irmã entrou no quarto aos pulos, trazendo o potinho de iogurte como um troféu, o atestado público da minha incompetência jardinística. Lá dentro, socado no meio de um bolo de algodão molhado, as bordas já marrons, o grão espreguiçava os dois cotilédones como os bebês fazem com os bracinhos quando querem ser carregados no colo.

Levantei a contragosto, ferida pela desfeita de um feijão ingrato. Eu que tinha aprendido o truque do algodãozinho na escola. Eu que peguei feijões com a minha mãe – “De várias cores, a professora disse que tem que levar tudo colorido!”. Eu que tinha molhado o chumaço de algodão, colocado no sol, mas quem levava os créditos era justo a Tathiana, três anos mais nova do que eu. Que irritante…

Quando, semanas depois, o feijão dela secou e morreu, fui atormentada pela culpa. Podia a raiva de uma criança de oito anos minar a energia vital de uma planta a ponto de ela sucumbir? Será que meu dedo era “podre” e não só impedia meu experimento de ciências de crescer como ainda matava todos os feijões da vizinhança? Morte assim seria contagiosa?

Passei meses me consumindo de remorso até que veio outro experimento de ciências. “Pessoal, na semana que vem, quero que vocês tragam de casa a coroa de um abacaxi. Vou mandar recado para os pais não esquecerem,  usaremos na aula.” Se eu fosse mais rebelde, teria comido o papel do recado só para não deixar rastros, mas eu era uma daquelas menininhas caladas e obedientes.

Morrendo de medo de ver outra planta perecer na minha mão, entreguei a cartinha para dona Bia e, uma semana depois, estava debruçada sobre a bancada do laboratório de biologia, arrancando as folhas da base da coroa do abacaxi e emborcando a ponta nua num copo de requeijão. “Agora, levem para casa e anotem todo dia o que vai acontecer”, orientou a professora. Levei o vidro o mais escondido que pude e deixei no armário trancado, na tentativa de conseguir levar ao fim um experimento secreto, longe das mãos da minha irmã caçula.

Fui traída por quem eu menos desconfiava: “Filha, o que essa planta está fazendo no guardaroupas? Vai morrer assim, Carolina, coitada!”. Pronto, minha mãe tinha colocado tudo a perder, a Tathiana faria um abacaxi i-gual-zi-nho ao meu, o dela nasceria lindo e morreria assim que eu pousasse meus olhos satânicos nele. Estava certa disso quando, dias depois, o vidro revelou uma raiz comprida e fina, mergulhando decidida rumo ao fundo do copo. Levantei o vidro indecisa para ver se embaixo havia a etiqueta com meu nome ou se minha irmã já tinha feito o irritante repeteco de tudo o que eu fazia. Lá estava, em letras tortas: Carolina.

Nem uma nota boa no boletim teria me deixado tão aliviada quanto aquele abacaxi enraizando no meu copo, sob os meus cuidados. Não perdi o rebolado nem mesmo quando mamãe comentou: “Olha que lindo! Está crescendo depois que pusemos no sol” – eu jamais teria feito essa associação entre aquelas folhas espinhentas e um ser vivo que precisava de luz natural para se desenvolver. Tudo na Natureza era tão misterioso que, meses depois, quando o abacaxi apodreceu no copo, dona Bia fez o experimento desaparecer como num passe de mágica.

Foi só no Ensino Médio que descobri que os abacaxis eram bromélias, e que aquilo que pareciam verrugas na casca eram muitas flores. Na mesma época, vi a flor de uma alface pela primeira vez, e lembro do meu espanto ao reconhecer que não sabia nada sobre a salada mais banal do planeta – logo eu, a criança que comia com prazer aquelas coisas verdes.

O mundo passou a ser um lugar de tesouros a serem descobertos. Se um pé de alface guardava segredos, o que esperar de uma alcachofra? Ou um palmito? Até hoje penso nas maravilhas que as ervilhas ainda podem nos revelar. Se um pequeno grão verde ajudou a ciência a entender os genes e a explicar a cor dos olhos das pessoas, talvez ele ainda tenha uns truques na manga, não?

 

Carol Costa é jornalista, jardinista e idealizadora do blog Minhas Plantas (www.minhasplantas.com.br). Tem uma coluna na rádio BandNews FM e apresenta o programa “Mais cor, por favor” no canal GNT