Ao longo da história, muitas vezes as plantas se tornaram armas, vítimas ou símbolos. Veja alguns casos e entenda como isso aconteceu

TEXTO: Luiz Mors Cabral

Por volta de 1552, o soldado e aventureiro alemão Hans Staden tornou-se cativo dos tupinambás, nas proximidades onde hoje se localiza a cidade de Ubatuba. Staden permaneceu nove meses em poder dos indígenas e só não foi devorado graças a uma mescla de audácia, talento e sorte, e seu livro sobre suas aventuras, “Duas viagens ao Brasil”, é, ainda hoje, uma importante fonte de pesquisa sobre o Brasil colonial. Em uma das passagens mais interessantes, Staden fala de uma utilização bastante curiosa para a pimenta que demonstra que os índios brasileiros tinham um grande domínio sobre seu ambiente e compreendiam as potencialidades das plantas que cultivavam. Em combates que poderiam durar meses contra aldeias inimigas, os tupinambás queimavam grandes quantidades de pimenta para forçar os ocupantes de determinada posição a abandoná-la. A queima das pimentas resulta na liberação do composto químico capsaicina, que produz a sensação de queimação nos tecidos.

Elas fazem parte da dieta dos ameríndios desde tempos imemoriais, e foram selecionadas e domesticadas durante milênios por suas características de realçar sabores e temperar comidas. Mas, enquanto a domesticação, lentamente, aumentava os conteúdos das capsaicinas, conferia às pimentas uma utilidade nova. Aproveitando-se do vento, os tupinambás queimavam as pimentas e enviavam às aldeias inimigas nuvens de capsaicina. Essa é talvez a primeira arma química da história da humanidade. As mesmas pimentas que ajudavam a prender o inimigo serviam depois para temperar sua carne nos banquetes canibais que ficaram tão famosos.

Esta imagem de 1557 fez parte do livro de Hans Staden e mostra o cerco a Igarassu.
A pimenta era só uma das armas – Ilustração: Wikimedia
Os índios brasileiros queimavam pimenta para obrigar o recuo dos inimigos

Se as pimentas foram usadas como armas de guerra pelos tupinambás, árvores urbanas foram vítimas durante a Segunda Guerra Mundial. Nos últimos dias da batalha de Berlim, quando o exército vermelho buscava dar o golpe final no coração do terceiro Reich, nas ruas da cidade, as árvores proporcionavam uma forma improvisada de defesa. Os alemães, buscando atrasar o avanço dos aliados, escavavam no tronco das árvores esconderijos para explosivos. Eram armadilhas antitanques que faziam as árvores caírem, bloqueando as principais avenidas de Berlim. Esse ato tardio e desesperado foi descoberto somente em 1955, quando uma árvore equipada com explosivos que não havia sido detonada foi gravemente atingida por uma tempestade e teve de ser cortada. Os funcionários identificaram a presença da bomba não somente nesta, mas também em muitas outras árvores ao longo da rua, evidenciando a estratégia de guerra. Os explosivos haviam passado despercebidos por 10 anos e foram cuidadosamente retirados. As árvores, dessa vez, sobreviveram.

A papoula crescia nos campos de batalha da Primeira Guerra Mundial. Tornaram-se um símbolo, como nessa instalação com papoulas de cerâmica, onde cada uma representa um soldado
inglês que perdeu a vida

“Nos Campos de Flandres” é um dos mais famosos poemas de guerra. Foi escrito durante a Primeira Guerra Mundial pelo tenente-coronel canadense John McCrae em homenagem a um amigo que morreu na Batalha de Ypres, na Bélgica. O poema faz referência às papoulas vermelhas que cresciam abundantemente nos campos de batalha na região dos Países Baixos.

“Nos campos de Flandres, as papoulas explodem
Entre as cruzes, fileira após fileira,
Isso marca o nosso lugar; e no céu
As cotovias, ainda cantando bravamente, voam.
Quase não se ouve em meio aos canhões abaixo.”

A visão impressionante de papoulas crescendo sobre o corpo de seus colegas de exército não era por acaso. Nas chamadas “guerras de trincheira”, como foi a Primeira Guerra Mundial, a explosão das bombas e os corpos se decompondo resultam em um acúmulo de calcário no solo, condições que privilegiam o crescimento das papoulas. A associação feita pelo poeta encontra respaldo na natureza da planta, e essa habilidade de crescer sobre solos revolvidos e cheios de corpos faz com que as papoulas sejam, anualmente, lembradas em datas nacionais como um símbolo da memória das guerras.

Ilustração: e-crow – Shutterstock

O ano de 2023 chegou ao fim, e o saldo, ao menos em relação à geopolítica, é muito negativo. Duas guerras de grande proporção tumultuam as relações internacionais (Ucrânia e Rússia; Israel e Hamas), sem falar nos conflitos que recebem menos atenção da mídia, como as disputas entre Azerbaijão e Armênia ou a guerra civil no Iêmen. Guerras são terríveis pelo preço que cobram, pelo terror que geram, por se alimentarem de vidas e de mentiras, e por envolverem a todos, direta ou indiretamente. Ninguém escapa a seu avanço, e logo tudo é afetado por elas, inclusive as plantas, que podem ser convertidas em armas, em vítimas ou em símbolos.

LUIZ MORS CABRAL é biomédico com pós-doutorado na Bélgica e professor na Universidade Federal Fluminense, onde faz pesquisas para identificar os genes envolvidos no desenvolvimento vegetal. Também realiza projetos de divulgação científica sobre a domesticação das plantas, sempre usando uma linguagem cativante.

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