Se você desalojou a fauna e a flora local para construir a sua casa, é hora de convidar pelo menos alguns animais para voltarem

Texto Eduardo Gonçalves Ilustração feita por IA com prompt de Roberto Araújo

Se você pudesse colocar a sua área verde em um divã, saberia que todo jardim teve um passado traumático. Digo isso porque, quando construímos as nossas habitações, escritórios e outras construções arquitetônicas ou urbanísticas, automaticamente desalojamos todo o restante da biodiversidade local. Talvez não tenha sido você quem desalojou pessoalmente as criaturas vivas que originalmente existiam aí, mas teve que ser feito por alguém; é como a humanidade constrói os seus espaços. E, então, depois de meses de limpeza de vegetação, compactação de solos, impermeabilizações em grande escala, tintas e vernizes antimofo e até uma dedetização inaugural, você tem um pedacinho lindo de um dos mais áridos e estéreis ecossistemas do planeta: uma obra recém-finalizada!
Por sorte, seres humanos parecem profundamente insatisfeitos com o resultado da sua própria eficiência em aniquilar toda a biodiversidade de determinado local recém-urbanizado. Graças ao caráter biofílico aparentemente impresso no DNA humano, ninguém fica realmente feliz em um local onde as pessoas são as únicas coisas vivas por ali. Eis que se começa a busca por repovoar aquele pequeno deserto urbano com vida, e um jardim começa a se estabelecer, além de animais de estimação que começam a circular pelo novo espaço.

Georgi Baird – Shutterstock

“Permita que a biodiversidade duramente excluída possa ter de novo acesso ao seu pequeno pedaço de paraíso”

É claro que, se é você que está repovoando aquele local com seres vivos, vai querer escolher quem pode entrar e quem não pode. Por comodidade e padronização, boa parte da biodiversidade vegetal nativa é trocada por equivalentes de consagrado uso ornamental. Em áreas onde existiam florestas, é muito mais provável que agora exista um gramado e cercas vivas topiadas. E, agora, toda a biodiversidade excluída parece olhar por cima da cerca, sonhando em poder fazer parte daquela nova paisagem reconstruída. É claro que não há mais espaço para todos. Acho difícil que as serpentes peçonhentas tenham acesso ao jardim. De fato, é pouco provável que alguma serpente tenha autorização para circular novamente pelo espaço. Aranhas e escorpiões também parecem terem sido banidos para sempre, ainda que continuem tentando voltar. Mesmo as plantas nativas, se tentarem ativar seus propágulos na área do jardim, podem ser eliminadas no próximo turno do jardineiro. E é então quando você pode interferir usando o mais eficiente insumo para jardins mais inclusivos: a gentileza. Sim, a gentileza jardinística faz verdadeiros milagres. Se mais vida contribui para o nosso bem-estar, por que não a convidar ou até recompensá-la por ter coragem de tentar voltar para aquele local? Não é assim tão difícil. Plantas floríferas e frutíferas vão atrair pássaros, abelhas, borboletas e uma miríade de pequenas criaturas.

Adilson Sochodolak – Shutterstock

Se incluir algumas plantas floríferas ou frutíferas que sejam nativas locais, esse convite vai ser ainda mais bem entendido, pois é como se fossem escritos no dialeto local. Mas não é só alimento que atrai a diversidade local para o seu jardim. Permita ou inclua abrigos artificiais, como pequenas caixas para pássaros ou até uma pequena e discreta pilha de madeiras ou pedras que possam abrigar uns sapinhos e lagartos. Se puder ter alguma fonte de água no jardim, esse é o maior tributo que poderá devolver à biodiversidade. Água é rara na forma pura, animais viajam quilômetros por isso. Laguinhos, fontes, bacias ou mesmo umas bromélias de bom tamanho vão oferecer água para quem passar por ali, fazendo do seu jardim um verdadeiro oásis. O prêmio para todo esse esforço? O seu instinto biofílico — que talvez você nem conheça tão bem — estará sendo alimentado pelo desfile de incríveis criaturas pelo seu espaço, que se altera sensivelmente ao longo do ano. E você poderá sentir um pouco da incrível paz de espírito por estar, na escala que for possível, permitindo que a biodiversidade duramente excluída possa ter de novo acesso ao seu pequeno pedaço de paraíso.

EDUARDO GONÇALVES o @ogrodabiofilia é botânico, paisagista e biófilo praticante, mas suas opiniões nessas áreas podem ser bem duras com o senso comum!

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