A madeira do pau-ferro era usada pelos tupinambás para fazer a ibirapema, usada no ritual do maior pesadelo dos europeus conquistadores que vinham ao Brasil

TEXTO: Luiz Mors Cabral ILUSTRAÇÕES Wikipedia

Em uma primeira impressão, os indígenas Tupinambás pareciam dóceis, se deixando converter facilmente ao catolicismo. Ou, ao menos era assim que faziam acreditar aos religiosos, porque o que tinham de dóceis tinham também de inconstantes, como logo perceberam os padres jesuítas.
Em 1556 o Padre Luis da Gram escreve a Dom Inácio de Loyola sobre as dificuldades na catequese tupinambá: “O que eu tenho como um grande obstáculo para os povos de todas essas nações é a sua própria condição… seus desejos de ser bom, tudo é tão passageiro que não se pode dar por certo”. Parece até que os Tupinambás enrolavam os padres que lhes tentavam impor o credo, convertendo tudo em pequenas vantagens. Com um anzol se lhes convertia ao cristianismo, e com outro, os desconvertia.

Os tupinambás no início da conquista do Brasil eram muito interesseiros e voláteis
em suas convicções. Era, porém, um povo guerreiro que se importava com a vingança

Como destacam os antropólogos Eduardo Viveiros de Castro e Manuela Carneiro da Cunha em um artigo de 1985(1) só havia uma verdadeira obstinação imutável nos tupinambás: a vingança.
E essa deveria ser plena, seguindo um ritual cujo ápice era a cerimônia festiva em que o inimigo era devorado. O canibalismo era um elemento central na vida guerreira tupinambá. Havia um protocolo para a realização da vingança, uma sequência elaborada descrita com detalhes por diversos cronistas, como André Thevet(2) , Jean de Léry(3) e Hans Staden(4) . Após ter vivido alguns meses, ou até anos, entre seus captores, o prisioneiro era abatido em praça pública. Na noite anterior à execução, armavam redes ao redor do prisioneiro nas quais as idosas da aldeia deitavam e durante toda a noite entoavam canções de desdém, demonstrando o quanto ele era odiado e o como seria o seu fim. O prisioneiro, que havia vivido desde sua captura como um membro da tribo, que havia se deitado com as mulheres e, eventualmente, até gerado descendentes, era devolvido à condição de inimigo em suas últimas 24 horas de vida. No dia seguinte, a muçurana, uma corda fabricada especialmente para essa ocasião, era firmemente amarrada à sua cintura de forma que o condenado não tivesse quase nenhuma mobilidade.

O ibirapema era um porrete feito com a madeira mais dura
que os tupinambás conheciam: o pau-ferro.
Era devidamente enfeitado e usado em rituais de canibalismo, o pavor dos europeus

Sem poder escapar de sua sina macabra, davam ao cativo jenipapos, que ele deveria lançar raivosamente contra todas as pessoas a seu alcance. A tribo e seus convidados divertiam-se com seu jantar.
Depois, o prisioneiro deveria ser morto com uma única pancada da ibirapema, o porrete de madeira que lhe devia esfacelar o crânio. Mas antes do golpe derradeiro, o prisioneiro travava uma conversa final com seu algoz, conforme Jean de Lery descreveu: “Não és tu da nação chamada Margaias, quem é o nosso inimigo? E você mesmo não matou e comeu de nossos pais e amigos?” Ao que o prisioneiro deve responder: “Já matei e já comi muitos amigos desse que me fez prisioneiro. Sou forte e poderoso. Fui eu quem, inúmeras vezes, pus a correr a vós, que não entendeis nada de guerra”. E termina dizendo: “Meus parentes me vingarão”. Aí então tudo ficava às claras. O prisioneiro seria comido porque, anteriormente, já havia
vitimado e comido os parentes e amigos dos que agora o prendiam. Mas antes de ter a carne devorada, deixava prometido um revide: seus parentes voltariam e pagariam na mesma moeda. A carne do morto era distribuída entre os visitantes e os membros da aldeia, em uma festa antropofágica cujo verdadeiro objetivo era a vingança. O golpe da ibirapema deveria ser preciso e a morte, instantânea. Para isso se preparava o guerreiro Tupinambá, e sua glória e fama entre os seus dependia em parte do sucesso desse golpe.
Era fundamental, portanto, que sua ferramenta, o tacape ritualístico, fosse o mais adequado à execução da tarefa.

Tipica das regiões úmidas da Mata Atlântica o pau-ferro tem o caule liso e
marmorizado e as células jovens são mais claras que as células mais antigas.
É esse caule a sua maior atração – Ambientação: Sítio Burle Marx – Rio de Janeiro;
foto: Valerio Romahn

Por esse motivo a ibirapema era feita da madeira mais dura que havia à disposição dos índios brasileiros, o pau-ferro (Libidibia ferrea). O pau-ferro é uma das árvores mais bonitas do Brasil. Natural dos nichos mais úmidos da Mata Atlântica, é hoje muito difícil de se encontrar em seu ambiente original. Apesar disso, é uma árvore muito utilizada na arborização urbana, o que constitui um exemplo de conservação pelo paisagismo. É seu tronco que a torna tão bonita. Liso e marmorizado, com células jovens mais claras que as células mais velhas (semelhantes ao que ocorre com as jabuticabeiras e goiabeiras), o tronco do pau-ferro parece estar camuflado, e sustenta uma copa frondosa, que em alguns casos chega à 25 metros de diâmetro.

A árvore é bem vigorosa e tem uma florada muito bonita, porém, difícil de ver
já que fica bem no alto – Imagem Wikipedia

Além da beleza, o que não passou despercebido pelos Tupinambás é a dureza de seu tronco. A madeira dessa espécie tem fibras com paredes muito espessas e vasos de diâmetro pequeno e em baixa frequência. A composição da parede celular também influencia, e o pau-ferro possui alto conteúdo de lignina e celulose quando comparada a outras espécies. Todas essas características conferem alta dureza e densidade à madeira, ideal para o golpe derradeiro no ritual antropofágico Tupinambá, fazendo do pau-ferro uma árvore tão bela quanto perigosa.

1 Carneiro da Cunha Manuela, Viveiros de Castro Eduardo. Vingança e temporalidade: os Tupinamba. In: Journal de la Société des Américanistes. Tome 71, 1985. pp. 191-208.
2 Thevet, André, Singularidades da França Antártica disponível para leitura online na Brasiliana Eletrônica da UFRJ.
3 LÉRY, Jean de. Viagem à Terra do Brasil. São Paulo: Livraria Martins Editora; Editora da Universidade de São Paulo, 1972. 258p.
4 STADEN, H. Duas viagens ao Brasil. Porto Alegre: L&PM, 2010. p.162

LUIZ MORS CABRAL é biomédico com pós-doutorado na Bélgica e professor na Universidade Federal Fluminense, onde faz pesquisas para identificar os genes envolvidos no desenvolvimento vegetal. Também realiza projetos de divulgação científica sobre a domesticação das plantas, sempre usando uma linguagem cativante.


[wpcs id=9559]